A Lenda de Nhô Pintcha: O Espírito da Floresta e Guardião dos Segredos de São Tomé

Nas encostas sombrias do Pico Cão Grande, onde a neblina se enrola entre as árvores como um véu vivo, e nos caminhos profundos da floresta de Óbo, onde o silêncio é quebrado apenas pelo canto distante de um pássaro ou o ruído de folhas sob pés descalços, há um nome que os mais velhos pronunciam em voz baixa: Nhô Pintcha. Não é um homem, nem um animal. É uma presença. Um guardião. Um espírito que, segundo a tradição oral de São Tomé, vigia a floresta, protege os segredos dos antepassados e castiga quem desrespeita a terra.

A lenda de Nhô Pintcha é uma das mais profundas e duradouras do folclore santomense. Mais do que uma simples história contada ao pé do fogo, é um sistema de valores, uma forma de educação ambiental ancestral, um código moral transmitido de geração em geração. Ele não aparece em livros oficiais, mas vive na memória coletiva, nas advertências dos avós e nos relatos de quem ousou caminhar sozinho pela mata à noite e voltou com os olhos arregalados, sem querer explicar o que viu.

Diz-se que Nhô Pintcha tem a altura de um homem, mas com membros desproporcionados — pernas longas que o fazem andar sem fazer barulho, braços que tocam o chão como galhos de árvore. Usa um chapéu de palha escura e roupas velhas, esfarrapadas, como as de um trabalhador das antigas roças. Seu rosto é raramente descrito com clareza: alguns dizem que tem olhos brilhantes, outros que não tem rosto algum. O que todos concordam é que ele não fala, mas emite sons — um assobio agudo, um riso abafado, um gemido que parece vir do fundo da terra.

Nhô Pintcha não é um demónio, nem um inimigo. É um guardião. Sua função, segundo a crença popular, é proteger os lugares sagrados da ilha: nascentes de rios, árvores centenárias, grutas escondidas onde os antepassados enterraram objetos rituais. Ele também protege os animais, especialmente os endémicos, como o Pássaro-do-sol ou a rã que nasce viva. Quem caça sem necessidade, quem corta árvores antigas ou polui uma fonte, atrai a sua atenção. E quando Nhô Pintcha aparece, não é para matar — é para avisar.

Há inúmeros relatos, passados de boca em boca, de caçadores que entraram na floresta ao entardecer e nunca mais foram vistos. De lenhadores que ouviram risos atrás das árvores e voltaram correndo, deixando para trás machados e cestos. De jovens que desafiaram a lenda, gritando o nome dele no meio da mata, e acordaram no dia seguinte a quilómetros de casa, sem memória do caminho. Essas histórias não são contadas para assustar — são ensinamentos. Ensinam que a floresta não é um recurso a ser esgotado, mas um ser vivo, com memória, com donos invisíveis.

A figura de Nhô Pintcha tem raízes profundas na cosmovisão afro-diaspórica de São Tomé. Ele não é uma criação europeia, nem um mito cristão adaptado. É uma entidade espiritual que combina elementos das religiões trazidas pelos africanos escravizados — especialmente tradições de Bantus e Akan — com o novo ambiente insular. Em muitas culturas africanas, existem espíritos da terra, guardiões de florestas e rios, como os nkisi do Congo ou os azumbi de Angola. Nhô Pintcha é, em essência, uma evolução dessas crenças num novo território, onde a floresta era ainda mais densa, mais misteriosa, mais poderosa.

O nome “Pintcha” pode vir do português antigo “pintcha”, uma vara fina usada para medir ou marcar território — o que reforça a ideia de que ele é um marcador de limites, tanto físicos como morais. Ele define onde o humano pode ir — e onde deve parar. Em tempos de roças coloniais, Nhô Pintcha também era invocado como símbolo de resistência. Os escravizados que fugiam para a floresta, formando comunidades de cimarrões, acreditavam que ele os protegia dos capatazes e cães de caça. Dizia-se que Nhô Pintcha desviava os rastos, criava sons falsos, levava os perseguidores a caminhos sem saída. Nesse sentido, ele é também um espírito de liberdade.

Hoje, em pleno século XXI, a lenda de Nhô Pintcha continua viva. Nas escolas rurais, os professores usam a história para ensinar conservação ambiental. Nos projetos de ecoturismo, os guias mencionam o nome dele com respeito, lembrando aos visitantes que certos locais não devem ser perturbados. E nas comunidades mais isoladas, ainda há quem deixe uma pequena oferenda — um copo de água, um pedaço de pão — ao entrar na floresta, em silêncio, como forma de pedir permissão.

A importância desta lenda vai além do misticismo. Ela representa um sistema de conhecimento tradicional que, mesmo sem livros ou diplomas, tem protegido a biodiversidade de São Tomé por séculos. Enquanto a ciência moderna luta para conservar espécies ameaçadas, a lenda de Nhô Pintcha já estava a fazer esse trabalho muito antes de existirem parques naturais ou ONGs. Ele é, em si, um mecanismo de conservação cultural e ecológica.

E, talvez o mais importante, Nhô Pintcha nos lembra que a natureza não é apenas um conjunto de recursos. É um espaço habitado. Um lugar com memória, com espíritos, com histórias. E que, mesmo em tempos de satélites e smartphones, há verdades que só se aprendem no silêncio da floresta — quando o vento para, os pássaros calam e se sente, por um instante, que não se está sozinho.

A lenda de Nhô Pintcha não precisa ser provada para ser verdadeira. Para muitos santomenses, sua verdade está na forma como as pessoas se comportam diante da floresta — com respeito, com cautela, com um misto de medo e admiração. Ele é mais do que uma figura do passado: é um lembrete vivo de que, para viver em equilíbrio com a natureza, às vezes é preciso acreditar em quem a protege em silêncio. E que, enquanto houver quem conte a sua história, a floresta de São Tomé nunca estará completamente desprotegida.

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