Calulu de Peixe: A Receita Nacional de São Tomé e Príncipe e Seu Significado Cultural

Em São Tomé e Príncipe, a comida não é apenas nutrição. É memória. É identidade. É um ato de resistência silenciosa, uma forma de lembrar quem somos, de onde viemos e o que sobrevivemos. Entre todos os pratos que compõem a cozinha santomense, nenhum carrega tanto peso simbólico quanto o Calulu de Peixe, considerado por muitos como a receita nacional do arquipélago. Mais do que um guisado de peixe com folhas, o Calulu é um património vivo, um ritual de família, uma ponte entre África, Europa e o Atlântico.

A sua origem é antiga, profundamente ligada à história da escravidão, à subsistência nas roças e à criatividade forjada na adversidade. Quando os africanos foram trazidos para as ilhas no século XV, trouxeram consigo técnicas de cozedura, o uso de folhas amargas e o cozimento lento em panelas de barro. Com o tempo, essas tradições fundiram-se com ingredientes locais — como o peixe fresco do oceano, o óleo de palma e a mandioca — e com influências portuguesas, como o alho, a cebola e o tomate. O resultado foi o Calulu: um prato que, ao mesmo tempo, alimenta o corpo e honra a memória.

O Calulu de Peixe é um guisado espesso, de cor vermelha intensa, com um aroma profundo que mistura o picante do malagueta, o doce da cebola e o untuoso do óleo de palma. O peixe — geralmente cação, garoupa ou pescada — é cozido lentamente com folhas de mandioca (funge) ou folhas de couve amarga (kale), que são amassadas e adicionadas ao molho. O resultado é uma textura rica, quase cremosa, que se combina perfeitamente com arroz branco, inhame cozido ou funge de banana.

Mas o que torna o Calulu tão especial não é apenas o sabor. É o ritual. Em muitas famílias, o Calulu é preparado aos domingos, feriados ou durante festas religiosas como o Divino Espírito Santo. É um prato de partilha, de reunião. Antes de cozinhar, as folhas são lavadas, descascadas e amassadas à mão, muitas vezes com um pilão de madeira. É um trabalho demorado, que envolve várias gerações: os mais velhos ensinam às crianças como preparar as folhas, como dosar o sal, como saber quando o molho está no ponto certo.

O nome “Calulu” tem raízes bantu, provavelmente ligado ao verbo kakula, que significa “cozinhar lentamente” ou “guisar”. Em Angola, existe um prato semelhante chamado Calulu de Peixe, feito com peixe seco e folhas de couve. Em São Tomé, a versão evoluiu com o uso de peixe fresco e a incorporação do óleo de palma, um ingrediente central na cozinha do Golfo da Guiné. Este óleo, extraído do fruto da palmeira, não é apenas um tempero — é um símbolo de identidade. Dá cor, sabor e riqueza ao prato, além de ser uma fonte de energia vital em uma dieta baseada em vegetais e peixe.

A importância do Calulu vai além da mesa. É um prato de resistência. Durante séculos, foi a comida das roças, feita com o que estava disponível: peixe do mar, folhas da horta, óleo caseiro. Não exigia ingredientes caros, nem fogões sofisticados. Era cozido em fogo de lenha, em panelas de barro ou ferro fundido, e servido em pratos de madeira. Mesmo hoje, em tempos de modernização, o Calulu continua a ser um ato de afirmação cultural. Quem o prepara está a dizer: “Não esqueci quem sou. Não troquei minha identidade por comodidade.”

Receita Completa: Calulu de Peixe

Tempo de preparo: 2 horas (incluindo preparação das folhas e cozedura lenta)
Dificuldade: Média
Rendimento: 6 porções
Origem: São Tomé e Príncipe
Categoria: Prato principal, culinária tradicional

Ingredientes:

  • 1,5 kg de peixe fresco (cação, garoupa ou pescada), em postas
  • 500 g de folhas de mandioca (ou couve amarga)
  • 1 cebola grande, picada
  • 4 dentes de alho, picados
  • 2 tomates maduros, sem pele e sem sementes, picados
  • 1 malagueta (ou pimenta vermelha), picada (opcional, para quem gosta de picante)
  • 1 colher de sopa de massa de tomate (opcional, para intensificar a cor)
  • 1 litro de água ou caldo de peixe
  • 1/2 copo de óleo de palma (aproximadamente 100 ml)
  • Sal a gosto
  • 2 folhas de louro (opcional)
  • Azeite de dendê (para finalizar, opcional)

Modo de Preparo:

  1. Preparação das folhas de mandioca:
    Lave bem as folhas de mandioca. Retire os talos duros e pique-as finamente. Em seguida, amasse-as com um pilão ou triture no liquidificador com um pouco de água. Este processo é essencial para libertar os sabores e obter a textura característica do Calulu. Reserve.
  2. Preparação do peixe:
    Limpe bem as postas de peixe, remova as espinhas se necessário e tempere com sal. Deixe repousar por 15 minutos. Em seguida, frite ligeiramente em pouca água ou cozinhe em água salgada por 5 minutos, apenas para firmar. Retire e reserve. (Em algumas versões, o peixe é adicionado cru ao molho para cozinhar lentamente.)
  3. Refogado base:
    Numa panela grande, aqueça o óleo de palma em fogo médio. Adicione a cebola e refogue até dourar. Junte o alho, o tomate, a malagueta e a massa de tomate. Cozinhe por 5 a 7 minutos, até formar um molho espesso e homogéneo.
  4. Cozedura do molho:
    Acrescente a água ou caldo de peixe ao refogado. Mexa bem para incorporar o óleo de palma. Em seguida, adicione as folhas de mandioca amassadas. Misture com cuidado e deixe cozinhar em fogo baixo por 45 minutos, mexendo ocasionalmente para não pegar no fundo.
  5. Adição do peixe:
    Coloque as postas de peixe no molho, com cuidado para não quebrar. Adicione as folhas de louro, se usar. Cozinhe por mais 30 a 40 minutos, em fogo baixo, até o peixe estar macio e o molho espesso. O Calulu tradicional não deve ficar seco — deve ter uma consistência cremosa, mas não líquida.
  6. Finalização:
    Prove e ajuste o sal. Se desejar, adicione um fio de azeite de dendê por cima antes de servir, para intensificar o aroma e a cor.
  7. Acompanhamentos tradicionais:
    • Arroz branco cozido
    • Inhame ou batata-doce cozida
    • Funge de banana (puré de banana verde)

O Calulu de Peixe é mais do que um prato. É um símbolo de resistência, adaptação e identidade. Em um país onde a história foi escrita pelos colonizadores, a culinária é uma das poucas formas de preservar a voz dos oprimidos. Cada ingrediente conta uma história: o peixe, do oceano que cercou a ilha; as folhas, da terra que alimentou os escravizados; o óleo de palma, da floresta que resistiu ao tempo.

Além disso, o Calulu desempenha um papel social importante. Em festas familiares, é o prato central. Em rituais religiosos, é oferecido como parte da partilha comunitária. E nas casas mais humildes, continua a ser a refeição que nutre, mesmo quando os recursos são escassos. É um prato democrático — não discrimina por classe, por idade ou por origem.

Hoje, o Calulu enfrenta desafios. A industrialização, a introdução de alimentos processados e a migração jovem para a cidade ameaçam a transmissão da receita. Muitos jovens não sabem como preparar as folhas de mandioca ou não têm paciência para o cozimento lento. Alguns substituem o óleo de palma por óleo vegetal, perdendo o sabor autêntico. Mas, ao mesmo tempo, há um movimento crescente de revalorização da culinária tradicional.

Projetos de turismo cultural em São Tomé incluem aulas de cozinha, onde os visitantes aprendem a fazer Calulu com mãos santomenses. Escolas técnicas ensinam a história da gastronomia local. Chefes locais, como Lídia do Rosário, têm promovido o Calulu em eventos internacionais, mostrando que a cozinha santomense merece lugar no mundo.

O Calulu de Peixe nos lembra que a verdadeira riqueza de um povo não está em monumentos ou moedas, mas na sua capacidade de transformar o simples em sagrado. Um peixe, umas folhas, um pouco de óleo — e nas mãos certas, torna-se uma obra de arte, uma celebração, uma oração.

E talvez, ao provar o Calulu, não estejamos apenas comendo. Estejamos lembrando. Honrando. Sobrevivendo.

Porque, em São Tomé, cada garfada é um ato de memória.

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