Nas manhãs em que a neblina sobe lentamente das encostas do Pico Cão Grande, há quem diga que se pode ouvir um som distante, suave como o vento entre as folhas, mas triste como um lamento. Não é o canto de um pássaro, nem o gemido do vento nas rochas. É, segundo os mais velhos de São Tomé, o choro dos ancestrais. Um pranto silencioso que vem das profundezas da montanha, um aviso, uma lembrança: de que certas dores não morrem com o tempo, e que a terra, quando ferida, guarda a memória de quem nela viveu, sofreu e foi esquecido.
Esta pergunta — Por que os ancestrais choram nas montanhas? — não é apenas poética. É uma das lendas mais profundas do folclore santomense, entrelaçada com história real, dor coletiva e espiritualidade ancestral. Conta-se que, no coração da floresta que envolve o Pico Cão Grande, viveu uma mulher chamada Dona Maria, cuja vida e morte deram origem a uma das maldições mais temidas e respeitadas do arquipélago. Sua história não está nos livros de história, mas nos sussurros dos guias florestais, nas advertências dos avós e nos momentos em que o silêncio da montanha parece carregar uma presença.
Diz a lenda que Dona Maria era uma mulher forte, de pele escura como a terra húmida, olhos profundos e voz calma. Tinha nascido nas roças do interior, filha de trabalhadores que, embora livres, ainda viviam sob o peso das antigas estruturas coloniais. Casou-se jovem com um homem chamado Joaquim, com quem teve três filhos. Viveram numa pequena choupana perto do rio Ana Chaves, onde cultivavam mandioca, banana e milho. Eram pobres, mas tinham paz. Até que, um ano de seca severa, a companhia dona da roça decidiu expulsar várias famílias para expandir o cultivo de cacau. Dona Maria e sua família foram uma delas.
Forçados a abandonar a terra que cultivavam há gerações, dirigiram-se para as encostas mais altas do Pico Cão Grande, onde a floresta ainda era densa e difícil de alcançar. Lá, construíram uma nova casa, longe dos olhos da administração colonial. Acreditavam que, na montanha, poderiam viver em liberdade, como os cimarrões do passado. Mas a vida era dura: o solo era pedregoso, a caça escassa, e o frio das noites, intenso. Um dos filhos adoeceu. Não havia médico, nem remédios. Dona Maria caminhou dias seguidos até a vila mais próxima, pedindo ajuda. Voltou com pouca coisa. O menino morreu poucos dias depois.
O segundo golpe veio com a traição. Um dos vizinhos, pressionado pela companhia, revelou o esconderijo de Dona Maria. Soldados chegaram à madrugada, queimaram a casa, mataram o gado e levaram Joaquim preso, acusado de “ocupação ilegal”. Enlouquecida de dor e raiva, Dona Maria subiu sozinha para o cume da montanha, levando apenas um crucifixo de madeira que a mãe lhe dera. Nunca mais foi vista com vida. Alguns dizem que saltou do penhasco. Outros, que se perdeu na floresta. Mas todos concordam com uma coisa: na noite em que ela desapareceu, a montanha tremeu.
Desde então, conta-se que, em certas noites — especialmente quando a lua está cheia ou antes de uma tempestade —, ouve-se um choro vindo do alto. Um choro de mulher, longo, desesperado, que ecoa entre as rochas. Os mais corajosos dizem que, se subirem ao topo com respeito, podem ver uma figura escura, de vestido branco, sentada junto a uma pedra onde cresce uma pequena cruz de madeira apodrecida. Dizem que ela não aparece para assustar, mas para lembrar. E que, quem desrespeita a montanha — quem corta árvores antigas, polui nascentes ou caça em excesso — atrai a sua ira.
A história de Dona Maria é muito mais do que uma lenda. É um eco da memória coletiva, uma forma de preservar a dor de gerações que viveram sob opressão, despossessão e silêncio. O Pico Cão Grande, com os seus 2.024 metros, não é apenas uma formação vulcânica impressionante — é um símbolo nacional, um marco geográfico que aparece na bandeira do país. Mas, para muitos santomenses, é também um santuário espiritual, um lugar onde o mundo visível e o invisível se encontram.
Na cosmovisão tradicional de São Tomé, os mortos não desaparecem. Continuam presentes, especialmente em locais que marcaram a sua vida. São chamados de nkisi ou espíritos da terra, e têm o poder de proteger — ou punir. Quando alguém morre com uma dor não resolvida, diz-se que o espírito fica preso, até que a injustiça seja reconhecida ou o local seja respeitado. Dona Maria, nesse sentido, tornou-se um desses espíritos: não uma assombração, mas uma guardiã do equilíbrio, uma voz que lembra aos vivos que a terra não pertence a ninguém, e que quem nela vive deve fazê-lo com respeito.
A maldição do Pico Cão Grande, então, não é um mito para assustar crianças. É um mecanismo cultural de proteção ambiental. Em comunidades rurais, os pais dizem aos filhos: “Não faças barulho na montanha, que os ancestrais estão a chorar.” “Não cortes essa árvore, que é lugar de Dona Maria.” Essas advertências não são apenas religiosas — são práticas. Elas impedem a destruição de nascentes, protegem áreas de floresta primária e evitam a caça de espécies raras. Em tempos de mudanças climáticas e desmatamento acelerado, essa sabedoria tradicional revela-se como um sistema de conservação ancestral, eficaz e profundamente arraigado.
Há ainda um outro nível na lenda: o da resistência feminina. Dona Maria não é uma vítima passiva. É uma figura de coragem, de luta silenciosa. Ao subir a montanha sozinha, escolheu o seu destino. Ao desaparecer, transformou-se em algo maior do que uma pessoa — tornou-se um símbolo. Em um país onde as mulheres negras foram historicamente invisibilizadas, a sua história é uma forma de reafirmação. Ela representa todas as mulheres que sofreram em silêncio, que perderam filhos, que lutaram pela terra e pela liberdade. Por isso, muitas mulheres mais velhas, especialmente nas zonas rurais, fazem pequenas oferendas no caminho do Pico: um copo de água, uma vela, um pedaço de pão. Não por medo — por respeito.
A Igreja Católica, presente fortemente em São Tomé, muitas vezes tentou demonizar essas crenças, chamando-as de “superstições”. Mas, com o tempo, até mesmo alguns sacerdotes começaram a reconhecer o valor dessas narrativas. Em algumas comunidades, missas são celebradas no sopé da montanha em novembro, mês dos fiéis defuntos, com orações não só pelos mortos da família, mas por “aqueles que morreram sem sepultura, sem nome, sem justiça”. É uma forma de sincretismo pacífico, onde a fé cristã e a espiritualidade ancestral se encontram.
Hoje, o Pico Cão Grande está dentro do Parque Natural Ôbo, uma área protegida que cobre parte das florestas mais antigas do arquipélago. Cientistas, biólogos e antropólogos têm estudado a região, muitas vezes com a ajuda de guias locais que conhecem as trilhas e as histórias. Alguns pesquisadores, ao ouvirem a lenda de Dona Maria, reconhecem nela elementos de verdades históricas: os conflitos por terra no século XX, as expulsões de comunidades rurais, a marginalização dos mais pobres. A figura de Dona Maria pode ser simbólica, mas os eventos que ela representa são reais.
Para os turistas que visitam São Tomé, a lenda oferece muito mais do que um conto assustador. Oferece acesso a uma dimensão profunda da cultura santomense — uma cultura que não se resume a danças ou festas, mas que inclui dor, memória, espiritualidade e relação com a natureza. Guias de ecoturismo contam a história com respeito, sem exageros, explicando que, ao subir o Pico, não se está apenas fazendo uma trilha — está-se entrando num espaço sagrado.
Por que os ancestrais choram nas montanhas? Porque ainda há dor não curada. Porque a terra lembra. Porque, em São Tomé, a história não está morta — ela vive nas árvores, nos rios, nos ventos das alturas. A lenda de Dona Maria não é sobre medo. É sobre memória. É sobre justiça. É sobre o dever que temos de honrar quem nos antecedeu, de proteger o que nos foi legado e de caminhar com humildade sobre uma terra que, embora pequena, carrega séculos de vida, luta e esperança.
E talvez, na próxima vez que a neblina subir do Pico Cão Grande, em vez de tremer, devamos apenas parar, escutar… e agradecer.
