No forno de uma casa em Trindade, onde o cheiro de açúcar queimado se mistura ao aroma da madeira a arder, uma mulher vira cuidadosamente uma forma redonda. O vapor sobe, e o doce que surge tem uma cor âmbar dourado, brilhante como mel ao sol. É o pão de ló de São Tomé, um bolo simples, mas carregado de história — um pedaço de memória que atravessou séculos, do colonialismo à cozinha caseira, da opressão à doçura partilhada em família.
Este não é o pão de ló leve e esponjoso conhecido em Portugal. É outra coisa: denso, úmido, quase caramelo, com uma textura que se desfaz na boca e um sabor que equilibra o doce intenso com um toque de amargor do açúcar queimado. É um doce de resistência, nascido na simplicidade, feito com poucos ingredientes, mas com muito cuidado. E, em São Tomé, não é apenas sobremesa — é tradição, é festa, é memória.
A origem do pão de ló de São Tomé está ligada à história do açúcar no arquipélago. No século XV, logo após a colonização portuguesa, São Tomé tornou-se um dos primeiros centros de produção de açúcar do Atlântico. As roças foram construídas com mão de obra escravizada, e o açúcar tornou-se a riqueza da ilha. Mas, para os escravizados, o açúcar não era um bem de consumo — era um símbolo de exploração. Ainda assim, com o tempo, o doce entrou na sua alimentação, primeiro como restos, depois como criação própria.
O pão de ló surgiu como uma forma de transformar o excesso de açúcar em algo comestível e celebratório. Nas festas religiosas, como o Divino Espírito Santo ou o Natal, as famílias usavam o açúcar mascavado ou refinado, ovos e farinha de trigo (quando disponível) para fazer um bolo que simbolizava abundância, mesmo em tempos de escassez. Não havia fornos modernos — cozia-se em fogões de lenha, com formas de metal ou barro, e o ponto do caramelo era feito no olho, com experiência.
Hoje, o pão de ló continua a ser um doce de ocasiões especiais. Em casamentos, batizados, festas de fim de ano, é raro uma mesa santomense não ter um pedaço deste bolo. E, nas casas mais tradicionais, ainda é feito da forma antiga — com caramelo caseiro, forno de barro e receita passada de mãe para filha.
Receita Completa: Pão de Ló de São Tomé
Tempo de preparo: 1 hora e 30 minutos (incluindo caramelo e cozedura)
Dificuldade: Média
Rendimento: 8 porções
Origem: São Tomé e Príncipe
Categoria: Sobremesa tradicional
Ingredientes:
- 6 ovos frescos
- 250 g de açúcar (para o caramelo)
- 200 g de açúcar (para a massa)
- 200 g de farinha de trigo
- 1 colher de chá de fermento em pó
- 1 colher de sopa de manteiga (para untar a forma)
- 1 pitada de sal
- 1 colher de chá de essência de baunilha (opcional, mas tradicional)
Modo de Preparo:
- Preparação do caramelo:
Numa panela pequena, coloque 250 g de açúcar com 2 colheres de sopa de água. Leve ao fogo médio, sem mexer. Deixe o açúcar derreter lentamente, até ficar com uma cor âmbar dourado. Quando estiver no ponto, desligue o fogo e verta imediatamente o caramelo na forma (preferencialmente redonda, de 24 cm). Gire a forma para espalhar o caramelo por todo o fundo e laterais. Deixe arrefecer — o caramelo endurecerá, formando uma camada brilhante. - Preparação da massa:
Num recipiente grande, bata os ovos com o açúcar (200 g) até obter uma mistura fofa, esbranquiçada e com o dobro do volume. Pode usar batedeira ou bater à mão — este passo é essencial para a textura do bolo. Adicione a essência de baunilha e a pitada de sal. - Incorporação da farinha:
Peneire a farinha de trigo com o fermento em pó. Adicione lentamente à mistura de ovos, mexendo com movimentos suaves de baixo para cima, para não desinflar a massa. Misture até ficar homogénea. - Cozedura:
Unte levemente a forma com manteiga (por cima do caramelo já endurecido) para facilitar a desenformação. Verta a massa na forma. Leve ao forno pré-aquecido a 170°C por cerca de 45 a 50 minutos, ou até que um palito saia limpo. Se possível, use forno de lenha — o calor mais lento e constante dá um toque tradicional. - Desenformação e arrefecimento:
Após cozinhar, deixe o bolo arrefecer por 15 minutos. Em seguida, passe uma faca pelas bordas e desenforme sobre um prato. O caramelo líquido escorrerá suavemente sobre o bolo, criando uma cobertura brilhante e perfumada. - Acompanhamentos tradicionais (opcional):
- Chá de hibisco ou de canela
- Frutas tropicais frescas (manga, banana, maracujá)
- Leite de coco gelado
O pão de ló de São Tomé é mais do que um doce. É um símbolo de transformação. Do açúcar que escravizou, fez-se um alimento que celebra a vida. Da simplicidade, nasceu um prato sofisticado em sabor. E da transmissão oral, mantém-se uma receita que, se não for escrita, pode desaparecer.
A sua textura densa e úmida vem do equilíbrio entre o caramelo e a massa rica em ovos. Ao contrário do pão de ló português, que depende do ar incorporado, este é mais parecido com um bolo de caramelo ou um kue lapis indonésio — úmido, rico, com um sabor que se prolonga. Em algumas versões, adiciona-se noz-moscada ou canela, especiarias que também têm raízes coloniais, mas que foram integradas à cozinha local.
Hoje, o pão de ló enfrenta o desafio da modernização. Muitos jovens não sabem fazer caramelo no fogo, preferem bolos de pacote ou receitas mais rápidas. Em hotéis e restaurantes, às vezes é substituído por versões mais leves, menos autênticas. Mas, ao mesmo tempo, há um movimento crescente de revalorização da doçaria tradicional.
Projetos de turismo cultural em São Tomé incluem aulas de culinária onde os visitantes aprendem a fazer pão de ló com mãos santomenses. Escolas técnicas ensinam a história dos doces locais. E nas redes sociais, jovens chefs locais compartilham vídeos da avó cozinhando, com legendas em forro e português, mostrando que a tradição não precisa ser abandonada para ser moderna.
O verdadeiro valor do pão de ló não está apenas no sabor — está na história que se conta enquanto se come. É o doce que a avó fazia nas festas de Natal. É o bolo que a mãe levava para a igreja. É o presente que se dá ao vizinho em agradecimento. É um ato de partilha, de gratidão, de identidade.
E talvez, ao provar um pedaço deste bolo, não estejamos apenas saboreando açúcar e ovos. Estejamos lembrando de quem nos alimentou, de quem resistiu, de quem transformou o amargo em doce.
Porque, em São Tomé, até a sobremesa tem uma história.